segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Le temps hypermodernes

Marília Antunes Dantas*

A obra de um dos mais pertinentes filósofos e sociólogos franceses, Gilles Lipovetsky, 59, marca profundamente a interpretação da modernidade e da pós-modernidade, mais especificamente, a exploração da noção de “indivíduo”, empreendida por uma descrição e por uma arqueologia minuciosa das múltiplas facetas do individualismo contemporâneo: o culto da moda e do luxo, as transformações no plano da ética, as metamorfoses da sociedade de consumo e da economia dos sexos.

Em seu primeiro livro intitulado “L`Ère du Vide” [A Era do Vazio, Ed. Gallimard, 1983], Lipovetsky analisa os efeitos da passagem da modernidade para a pós-modernidade, cuja transição teria se dado entre os anos 60/70, partindo do ponto capital característico da sociedade pós-disciplinar: a autonomia do indivíduo pós-moderno em ruptura com o mundo da tradição e suas estruturas de normalização.

Entretanto, como afirma o autor, essa liberação não engendrou o desaparecimento dos mecanismos de controle; estes foram adaptados de tal modo a se apresentarem de forma menos diretiva e impositiva ao indivíduo. Ao invés da disciplina, entendida como um conjunto de técnicas e de regras particulares cuja finalidade básica era a de submeter os indivíduos a uma padronização de suas condutas, a era pós-moderna opera segundo o processo de personalização, uma nova modalidade de organização da sociedade e do gerenciamento dos comportamentos, “não mais pela tirania dos detalhes, mas com o mínimo constrangimento e a máxima possibilidade de escolhas privadas possíveis, com o mínimo de austeridade e o máximo de desejo possível, com o mínimo de coerção e o máximo de compreensão possível”. (LIPOVETKSY, 1983, p. 2)

Desta forma, a pós-modernidade se apresenta sob a forma de um paradoxo, ao revelar a coexistência nem sempre harmoniosa entre duas lógicas: uma que estimula a autonomia do indivíduo e, outra, que o convida à dependência.

Em seu segundo título “L’Empire de L´Éphémère” [O Império do Efêmero, Gallimard, 1987], Lipovetsky examina o papel crucial da moda na contemporaneidade, pois, com a difusão da lógica da moda - cujas características principais se revelam através do consumo de massa e dos valores por ele veiculados, a todo o conjunto do corpo social, teríamos enveredado da modernidade à pós-modernidade, mutação evidenciada a partir dos anos 60.

A extensão desse princípio aos múltiplos aspectos da vida social conferiu uma reestruturação e uma nova dinâmica à própria sociedade, baseadas nos pilares estruturantes da lógica da moda, isto é, na importância do efêmero, da sedução e da diferenciação marginal.

A apropriação e a difusão da lógica da moda pelo conjunto da vida social possibilitaram uma desqualificação do passado e dos valores tradicionais, através da afirmação do reino do novo, do desejo de novidade, do efêmero sistemático e da vontade de sedução tocando indistintamente o domínio público e o privado.

Em seu mais recente livro, escrito em colaboração com Sébastien Charles, filósofo e professor da Universidade Sherbrooke, Canadá, “Le Temps Hypermodernes” [Os Tempos Hipermodernos, Ed. Grasset, 2004], Lipovetsky nos convida a uma discussão acerca da pertinência do próprio conceito “pós-modernidade”, além de se ater, pela primeira vez, na descrição, em seus traços mais evidentes, daquilo que há de melhor e de pior na hipermodernidade.

O autor defende a idéia de que o uso do termo “pós-modernidade”, para a descrição e análise dos tempos atuais, seria ambíguo, problemático e mesmo incorreto, uma vez que engendra um sentido de um para além da modernidade, marcando uma evidência de ruptura em relação aos modelos que alicerçavam a noção de individualismo moderno. A pós-modernidade foi, segundo o autor, no máximo uma fase de transição ocorrida entre os anos 60/80 que fez entrar em cena uma figura inédita: a do indivíduo autônomo, liberto dos freios institucionais, das ideologias políticas e das normas da tradição, característicos da modernidade.

Tal como descrito em “A Era do Vazio”, o individualismo narcísico pós-moderno seria marcado pelo hedonismo, pelo gosto das novidades, pela promoção do fútil e do frívolo, pela vontade de expressar uma identidade singular, “uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, tumultuando as mentalidades e os valores tradicionais” (CHARLES, 2004, p. 21), fazendo aparecer, desta forma, Narciso, ícone pós-moderno, encarnado na figura do indivíduo cool, flexível e libertário.

Desde os anos 80, estaríamos ainda submetidos a este mesmo modelo de individualismo narcísico? Esta é a indagação que Lipovetsky nos propõe em “Le Temps Hypermodernes”. Inúmeros indícios nos conduzem a pensar que entramos na era onde tudo se tornou “hiper”, hipercidades, hipermercados, hiperpotências, hiperterrorismo, hipercapitalismo, uma cultura do excesso, cujos pilares se assentam nas noções de hipermodernidade, hiperconsumo e hipernarcisismo.

Após a transição cultural proporcionada pela pós-modernidade, entra em cena a hipermodernidade, uma sociedade marcada pelo signo do excesso, pela cultura da urgência e do sempre mais, pela hiperfuncionalidade, pelo movimento, pela fluidez e pelo declínio das tradicionais estruturas de sentido, onde os grandes sistemas de representação de mundo são tomados como objeto de consumo, sendo cambiáveis de modo tão efêmero como um automóvel ou um apartamento, num processo de permanente reciclagem do passado: “Chegamos ao ponto em que a comercialização dos modos de vida não encontra mais resistências estruturais, culturais ou ideológicas, e onde as esferas da vida social e individual são reorganizadas em função da lógica do consumo”(LIPOVETSKY, 2004, p. 41).

Hiperconsumo, sustentado por uma lógica hedonista e emotiva que produz em cada sujeito o desejo de consumo, muito mais em função do prazer que este pode lhe proporcionar do que propriamente como meio de avaliação e de comparação com os demais indivíduos. O hiperconsumo emocional dita a especificidade das relações que estabelecemos com nossos afetos, com os objetos, com os outros, com a vida. O império do princípio do hiperconsumo se evidencia na busca de emoções e de prazer, no cálculo utilitarista das relações sociais e de trabalho, na superficialidade e frivolidade da expressão dos afetos.

Hipernarcisismo, época de um Narciso que se toma por maduro, responsável, organizado, eficaz, rompendo com o modelo de Narciso típico dos anos pós-modernos.
Mas, como pensarmos em Narciso maduro, se o indivíduo hipermoderno insiste em permanecer como um eterno adolescente, os “adultescentes”, como que se recusando a assumir a idade adulta e revelando o medo de envelhecer.

E o que dizer de Narciso responsável, se a cada dia observamos a consolidação e multiplicação de comportamentos irresponsáveis, evidenciados pelo fato de as declarações de intenção não serem mais seguidas de qualquer efeito? Em outras palavras, progridem as condutas responsáveis ao mesmo tempo em que há a acentuação da irresponsabilidade.

Narciso organizado e eficaz? E o que dizer da ascensão de comportamentos disfuncionais, expressos nas formas de compulsões e adições, de sintomas psicossomáticos, de quadros depressivos, engendrados paradoxalmente particularmente no universo funcional da técnica?

Em recente entrevista publicada em 14 de março de 2004, ao “Caderno Mais!”, da Folha de São Paulo, Lipovetsky afirma ser a sociedade hipermoderna uma

sociedade esquizofrênica em que convivem, de um lado, uma sociedade hiperfuncional, funcionalidade da técnica, da ciência, que trabalha cada vez mais critérios mensuráveis, de eficácia e operacionalidade. Paralelamente, assiste-se à ascensão de comportamentos disfuncionais e os dois existem juntos (...) Logo, tem-se de um lado uma sociedade em que cada vez mais impera a ordem e, de outro, a desordem – no fundo, um quadro de patologia e de caos.

A situação paradoxal da sociedade hipermoderna, dividida entre a apologia do excesso e o elogio à moderação traz como conseqüência uma inquientante desestabilização emocional e fragilização do indivíduo. Face à desestruturação das formas de controle social, tem-se o direito a decidir e fazer escolhas no âmbito de um contexto cada vez mais plural e liberal, mas também nos cabe a capacidade para o exercício do autocontrole e do comportamento individual responsável. Desta forma, o indivíduo hipermoderno revela-se inquieto e amedrontado diante de um futuro incerto e ambivalente: por um lado é estimulado à valorização de princípios como a saúde, o equilíbrio e a prevenção; por outro, levado pela lógica do excesso, revela comportamentos extremamente excessivos, como por exemplo, no âmbito da alimentação, onde podemos observar a proliferação de comportamentos anoréxicos, indicadores de uma patologia no nível do excesso de controle e de comportamentos bulímicos, reveladores de uma patologia do excesso de consumo.

Tudo parece indicar que realmente estamos passando de uma era “pós” à era “hiper”, onde uma das questões mais importantes aponta para a necessidade de se repensar a socialização no contexto hipermoderno, isto é, quais são os desdobramentos éticos engendrados por uma mutação dessa natureza?

A hipermodernidade nos revela, segundo Lipovetsky, mais uma vez um paradoxo: Por um lado, numerosos são aqueles que denunciam o aumento da violência e da barbárie em nossa sociedade. O hedonismo individual, ao minar as instâncias tradicionais de controle social, indica favorecer o relativismo desenfreado dos valores, permitindo o livre curso de toda sorte de elucubrações e de ações possíveis. Reveladas por uma ética e por um espírito de irresponsabilidade e incapaz de resistir tanto aos apelos externos como aos impulsos internos, o indivíduo hipermoderno revela comportamentos e modos de vida irresponsáveis, tais como cinismo generalizado, recusa de empreendimento de esforço e de sacrifício frente às adversidades da existência, comportamentos compulsivos, violência gratuita, tráfico de drogas e toxicomanias. Por outro lado, como efeito da ética da responsabilidade, temos de admitir que os direitos do homem jamais foram vividos de modo tão consensual como hoje e que os valores como a tolerância e respeito às diferenças jamais foram tão vividamente manifestados e defendidos como atualmente.

Ao se repensar a futuro da hipermodernidade, devemos analisar sua capacidade em fazer triunfar a ética da responsabilidade sobre os comportamentos irresponsáveis, e o fato de nossa sociedade ser capaz de produzir tal ou qual efeito depende obviamente da consciência de cada indivíduo sobre a importância de sua responsabilidade neste processo: “Jamais uma sociedade favoreceu uma autonomia e uma liberdade individuais tão amplas em seu exercício, jamais seu destino se encontrou tão estreitamente ligado aos comportamentos daqueles que a compõem”. (CHARLES, 2004, p. 65)

Em “Le Temps Hypermodernes”, Lipovetsky nos aponta a lógica contraditória da sociedade hipermoderna, acentuando o fato de que esta contradição ter sido introjetada pelos indivíduos, que revelam-na através de seus conflitos e de seu medo diante da incerteza, da complexidade e da imprevisibilidade do presente.

Mas sua análise não se atém tão somente à interpretação da hipermodernidade, revelando seus paradoxos. O autor nos convida à reflexão fundamental acerca de nosso papel nesta sociedade, conclamando a todos a se responsabilizarem frente ao futuro. E, fazemos nossas as palavras de seu interlocutor, Sébastien Charles:

Lipovetsky propõe uma interpretação de hipermodernidade que se pretende cada vez mais racionalista e pragmática, e segundo a qual a responsabilização é a pedra angular do futuro de nossas democracias. Sem responsabilidade verdadeira e autêntica, as declarações de intenção virtuosas, mas vazias de efeitos, não serão suficientes. São imperiosas a valorização da inteligência dos homens e a mobilização das instituições, a fim de que sejam preparadas nossas crianças para os problemas do presente e do futuro. A responsabilização deverá ser coletiva e se exercer em todos os domínios do poder e do saber, mas também deve ser individual, pois temos o dever de assumir esta autonomia que a modernidade nos deixou como legado.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIPOVETSKY, G. L´Ère du Vide. Gallimard: Paris, 1983.

LIPOVETSKY, G. L´empire de l´éphémère. La mode et son destin dans les sociétés modernes. Gallimard: Paris, 1987.

LIPOVETSKY, G. & CHARLES, S. Le Temps Hypermodernes. Paris: Editions Grasset, 2004.

LIPOVETSKY, G. Entrevista. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 mar. 2004. Caderno Mais!

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Vitrina é a forma aportuguesada do francês vitrine.
Vitri vem do latim vitrum que designa vidro.

Segundo o dicionário Aurélio vitrina é “a vidraça atrás da qual ficam expostos objetos destinados à venda”. Ou ainda, “espécie de caixa com tampa envidraçada, ou armário com vidraça móvel, onde se guardam objetos expostos à venda ou a serem vistos”.

Segundo o dicionário contemporâneo da língua portuguesa Delta Larousse vitrina é “ a vidraça em que os lojistas expõem amostras ou exemplares das mercadorias que têm nos respctivos estabelecimentos; mostrador”.

Segundo a Grande enciclopédia Larousse Cultural vitrina é “ o armário envidraçado em que estão arranjados os objetos que se colecionam ou expõem com fins mercantis, de forma que seja fácil ao visitante observa-los.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

A vitrine remonta ao Império Romano

A história da vitrine remonta o Império Romano, onde já havia lojas em salas retangulares, tendo ao fundo um mezanino como moradia do lojista. Naquela época, já havia a preocupação em expor os produtos em prateleiras e surgiam os primeiros esboços de um shopping center, como o Mercado Trajano, do século II D.C., que tinha seis andares e 150 lojas, organizadas a partir dos produtos que vendiam. Com o fim do Império Romano e a chegada da Idade Média, as lojas praticamente desapareceram, passando o comércio a ser feito em feiras. Foi só na Renascença que o comércio em lojas floresceu novamente, devido à era do Mercantilismo. Os joalheiros e artesãos criaram um tipo de vitrine para expor seus trabalhos, uma versão antiga da vitrine. No século XIX, com a Revolução Industrial, as lojas se proliferaram por toda a Europa e as palavras “vitrine” e “decoração” passaram a entrar em uso. Em 1850, apareceram as primeiras "bonecas de moda", feitas em porcelana e couro. Elas desapareceram quando as manequins, simulando figuras humanas tomaram o seu lugar. Foi no período da Rainha Vitória (1832-1895) que surgiram as vitrines como são hoje: janelas mostrando a mercadoria ao público passante. A partir de 1852 apareceram as primeiras lojas de departamentos em Paris, com vitrines chegando ao nível da rua. As pessoas saíam de casa "para ver vitrines". Os manequins eram feitos com mais de 100 quilos de cera – no verão derretiam, e no inverno, rachavam. Aliás, atribui-se aos franceses como pais da evolução das vitrines, cuja palavra vem do vocabulário francês (em português, o certo seria vitrina). Desde então, além de produtos e ofertas, elas exibem também mudanças de costumes, avanços da tecnologia e reflexos do tempo em que se vive. Na virada para o terceiro milênio, ganham mais arte, mesmo que a loja esteja se convertendo na própria vitrine, como acontece nas “open store”.

fonte

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Sobre o Luxo*

Por João Braga, professor do MBA em Gestão do Luxo - FAAP
* Luxo: Fator que encanta, símbolo de status, elemento diferencial, seja concreto ou imaterial, o Luxo trata e retrata a questão do prestígio secular.

Entender o significado das palavras é, de fato, muito curioso. E mais curioso ainda é que as mesmas palavras, normalmente, ganham significados diferentes ao longo dos tempos de acordo com o pensamento e o contexto de cada período. Podemos compreender uma palavra sob os pontos de vista etimológico, histórico, cultural, semiológico, comportamental, econômico e comercial, entre outros. Todavia, optando pela objetividade textual, a tentativa de refletir sobre o Luxo será em torno de uma generalização do seu sentido, e não o específico de cada ou de uma só vertente.

Etimologicamente, "Luxo" e "luz" têm uma mesma origem. O radical comum e originário de ambas as palavras em latim é "lux", que significa exatamente "luz". Hoje em dia, talvez estas palavras não tenham mais tanta proximidade no significado, todavia, pode-se admitir que a referência à luz esteja embutida no que diz respeito à luminosidade, brilho, esplendor e, por extensão, a um gosto resplandecente ou a uma distinção perceptível.

Porém, deve-se admitir também que o Luxo, independente da etimologia e do período observado, é um assunto muito ligado à subjetividade e, por isso, torna-se muito relativo. Sob o ponto de vista concreto, está associado à suntuosidade, ao fausto, à pompa, à extravagância, ao supérfluo, à frivolidade, à aparência, ao poder material etc.

Contudo, sob os aspectos da imaterialidade, o Luxo deixa de estar ligado a um objeto para se associar a um signo, a um código, a um comportamento, a uma vaidade, à comodidade, ao conforto, a um saudável estilo de vida, a valores éticos e estéticos, aos saberes, ao conhecimento, ao reconhecimento, ao prazer e à satisfação e, até mesmo, à discrição, ao requinte e, portanto, a um outro tipo de elegância.

No que diz respeito às questões econômicas e comerciais, o Luxo se envolve com o raro, com a restrição, com o exclusivo e, por isso, com o acesso de alto custo. Daí surge uma especulação aos seus artigos e à gestão dos bens assim caracterizados. Por estar associado à qualidade, à diferença, à raridade, à satisfação pessoal, ao reconhecimento, à preferência, ao desejo, ao sonho, ao quase inatingível e também à admiração alheia, o Luxo, de uma maneira geral, é uma diferenciação com custo mais elevado.

Entre as nações do mundo atual, parece ser a França o país que ocupa o primeiro lugar em produção, difusão e gosto em consumir os bens de Luxo, apesar da existência de todo um fausto em países orientais; seguida da Inglaterra que, por sua vez, é diferente em diversos aspectos, mas que também não abre mão das suas tradições.

Parece que, aqui, surge uma palavra de alto valor para o entendimento de uma das possibilidades de significado do Luxo: a tradição. Isso não significa estar alienado ao ar dos tempos, às modernizações, mas, sobretudo, a saber valorizar e manter as raízes, as origens, as peculiaridades e sutilezas, os estilos, as autorias e, portanto, a valorizar o tradicional.

Contudo, são de muito bom tom, na abrangência do Luxo, os valores culturais, a preservação das memórias, a valorização do passado, a herança dos ancestrais, o reconhecimento e a preservação das tradições históricas. E é exatamente aí que se faz presente a diferenciação e a subjetividade individual ou de um povo. Desta forma, o Luxo talvez seja avesso às características da indústria cultural para assim privilegiar os valores de erudição e, até mesmo, (paradoxalmente) as genuínas tradições populares.

No universo da moda, apesar de na sua origem a moda ter sido o próprio Luxo, este atualmente está muito mais próximo do estilo do que da moda propriamente dita, uma vez que moda, hoje, está relacionada aos aspectos de diluição e democratização de um estilo. Portanto, nesta área, o luxuoso está associado à alta-costura e ao prêt-à-porter requintado, às roupas de grife e aos objetos assinados (sem, obviamente, querer exibir gratuitamente a marca, mas fazendo-o com naturalidade), aos tecidos sofisticados, aos bordados, ao fazer artesanal, à joalheria e suas pedras e metais preciosos, à relojoaria, à peleteria, aos sapatos, aos perfumes, aos cosméticos, à beleza, à sedução, à qualidade, ao novo, ao diferente e ao inusitado.

Independente do setor da moda, outras práticas ou mesmo áreas podem ter também uma relação muito próxima com os aspectos do Luxo, como é o caso dos mercados de obras de arte, dos automóveis, dos iates, dos objetos de casa como cristais, porcelanas, pratarias -(e de como saber usá-los seja na decoração ou à mesa); dos tapetes -, do próprio estilo de vida e, também, de uma residência, do lazer e da diversão como cruzeiros e esportes requintados, das viagens e hotéis sofisticados, do hobby de ser um colecionador, das bibliotecas particulares e de uma boa leitura e, também, no que tange aos hábitos culinários como vinhos, especiarias, alimentos raros e caros e, por extensão, aos restaurantes refinados. Tudo isso não se refere ao exagero e à ostentação, mas em saber usar até onde o equilíbrio determinar.

Portanto, trata-se de um tema de abrangência e reflexão profundas, e que nos remete ao sonho ou à tentativa de realização de um sonho, ao desejo, à própria evolução cultural e à mudança dos tempos, obviamente sem perder as referências.

E por falar em tempo, vale lembrar que ao estarmos já no século XXI, a palavra "Luxo" também já ganhou outras conotações e, agora, agrega preceitos até então fora das tradicionais premissas, tais como, a valorização de uma consciência e atitude ecológicas, a liberdade de utilização do tão escasso tempo, a prioridade da tranqüilidade, da segurança, do conforto, da praticidade, do silêncio, da simplicidade, do autodomínio, da qualidade de vida, do respeito à diversidade cultural, do bom humor, da boa reputação, da valorização das virtudes, do compromisso social, do respeito ao semelhante, da convivência coletiva pacífica, da educação, do lazer, da distração, da introspecção, da espiritualidade e da paz. Tudo isso se sobrepõe às aparências (e principalmente às falsas aparências) e ao acúmulo de objetos e riquezas.

Com todas essas novas premissas, parece que a tão antiga subjetividade continua sendo um fator indiscutível e indispensável às características de permanência do Luxo. E, na contemporaneidade, o Luxo está mais associado a ser e manter-se, do que a ter e se exibir.

Voltando à etimologia, num mundo tão dispersivo quanto o atual, o grande Luxo continua estando associado à sua origem em "lux", porém, numa nova ética, fugindo da luminescência e privilegiando a iluminação.

* Originariamente escrito para suas aulas no curso do MBA de Gestão do Luxo, em 2004, este artigo foi publicado na revista Costura Perfeita.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Mito


Mito de Narciso

Narciso era filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope, e era um jovem de extrema beleza. Porém, à despeito da cobiça que despertava nas ninfas e donzelas, Narciso preferia viver só, pois não havia encontrado ninguém que julgasse merecedora do seu amor. E foi justamente este desprezo que devotava às jovens a sua perdição.

Pois havia uma bela ninfa, Eco, amante dos bosques e dos montes, companheira favorita de Diana em suas caçadas. Mas Eco tinha um grande defeito: falava demais, e tinha o costume de dar sempre a última palavra em qualquer conversa da qual participava.

Um dia Hera, desconfiada - com razão - que seu marido estava divertindo-se com as ninfas, saiu em sua procura. Eco usou sua conversa para entreter a deusa enquanto suas amigas ninfas se escondiam. Hera, percebendo a artimanha da ninfa, condenou-a a não mais poder falar uma só palavra por sua iniciativa, a não ser responder quando interpelada.

Assim a ninfa passeava por um bosque quando viu Narciso que perseguia a caça pela montanha. Como era belo o jovem, e como era forte a paixão que a assaltou! Seguiu-lhe os passos e quis dirigir-lhe a palavra, falar o quanto ela o queria... Mas não era possível - era preciso esperar que ele falasse primeiro para então responder-lhe. Distraída pelos seus pensamentos, não percebeu que o jovem dela se aproximara. Tentou se esconder rapidamente, mas Narciso ouviu o barulho e caminhou em sua direção:

- Há alguém aqui?
- Aqui! - respondeu Eco.

Narciso olhou em volta e não viu ninguém. Queria saber quem estava se escondendo dele, e quem era a dona daquela voz tão bonita.

- Vem - gritou.
- Vem! - respondeu Eco.
- Por que foges de mim?
- Por que foges de mim?
- Eu não fujo! Vem, vamos nos juntar!
- Juntar! - a donzela não podia conter sua felicidade ao correr em direção do amado que fizera tal convite.

Narciso, vendo a ninfa que corria em sua direção, gritou:
- Afasta-te! Prefiro morrer do que te deixar me possuir!
- Me possuir... - disse Eco.

Foi terrível o que se passou. Narciso fugiu, e a ninfa, envergonhada, correu para se esconder no recesso dos bosques. Daquele dia em diante, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos das montanhas. Evitava o contato com os outros seres, e não se alimentava mais. Com o pesar, seu corpo foi definhando, até que suas carnes desapareceram completamente. Seus ossos se transformaram em rocha. Nada restou além da sua voz. Eco, porém, continua a responder a todos que a chamem, e conserva seu costume de dizer sempre a última palavra.

Não foi em vão o sofrimento da ninfa, pois de sua morada Nêmesis vira tudo o que se passou. Como punição, condenou Narciso a um triste fim, que não demorou muito a ocorrer.

Havia, não muito longe dali, uma fonte clara, de águas como prata. Os pastores não levavam para lá seu rebanho, nem cabras ou qualquer outro animal a frequentava. Não era tampouco enfeada por folhas ou por galhos caídos de árvores. Era linda, cercada de uma relva viçosa, e abrigada do sol por rochedos que a cercavam. Ali chegou um dia Narciso, fatigado da caça, e sentindo muito calor e muita sede.

Narciso debruçou sobre a fonte para banhar-se e viu, surpreso, uma bela figura que o olhava de dentro da fonte. "Com certeza é algum espírito das águas que habita esta fonte. E como é belo!", disse, admirando os olhos brilhantes, os cabelos anelados como os de Apolo, o rosto oval e o pescoço de marfim do ser. Apaixonou-se pelo aspecto saudável e pela beleza daquele ser que, de dentro da fonte, retribuía o seu olhar.

Não podia mais se conter. Baixou o rosto para beijar o ser, e enfiou os braços na fonte para abraça-lo. Porém, ao contacto de seus braços com a água da fonte, o ser sumiu para voltar depois de alguns instantes, tão belo quanto antes.

- Porque me desprezas, bela criatura? E por que foges ao meu contacto? Meu rosto não deve causar-te repulsa, pois as ninfas me amam, e tu mesmo não me olhas com indiferença. Quando sorrio, também tu sorris, e responde com acenos aos meus acenos. Mas quando estendo os braços, fazes o mesmo para então sumires ao meu contacto.

Suas lágrimas caíram na água, turvando a imagem. E, ao vê-la partir, Narciso exclamou:

- Fica, peço-te, fica! Se não posso tocar-te, deixe-me pelo menos admirar-te.

Assim Narciso ficou por dias a admirar sua própria imagem na fonte, esquecido de alimento e de água, seu corpo definhando. As cores e o vigor deixaram seu corpo, e quando ele gritava "Ai, ai", Eco respondia com as mesmas palavras. Assim o jovem morreu.

As ninfas choraram seu triste destino. Prepararam uma pira funerária e teriam cremado seu corpo se o tivessem encontrado. No lugar onde faleceu, entretanto, as ninfas encontraram apenas uma flor roxa, rodeada de folhas brancas. E, em memória do jovem Narciso, aquela flor passou a ser conhecida pelo seu nome.

Dizem ainda, que quando a sombra de Narciso atravessou o rio Estige, em direcção ao Hades, ela debruçou-se sobre suas águas para contemplar sua figura.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Texto

O espelho
Guimarães Rosa
(In: Primeiras Estórias, 1962)

- Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda Ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade - um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas - que espelho? Há-os "bons" e "maus", os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, Somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo Incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.

Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tatear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mm. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais - côncavos, convexos, parabólicos - além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida?

Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a monstrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos - e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável - deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse... Sim, são para se ter medo, os espelhos.

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? - jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o monstro?

Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho - anote-a -, esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz - trevas. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe...

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos - um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício - faziam jogo. E o que enxerguei, por Instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era - logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mm - à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor Imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inebotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos - de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mm não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translatívo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.

Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa - a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio "visual" ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mm puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenétícas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém - a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mm recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.

Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os "exercícios espirituais" dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora... Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo. Sem ver o que, em "meu" rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário - as parecenças com os pais e avós - que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intato. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.

À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncío. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.

Mas, com o comum correr cotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, infletindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência fisica. Eu era - o transparente contemplar?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mm se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mm uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... desalmado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho - com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças - o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.

Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o trans-físico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico - na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho...

Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei - não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mm se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde - por último - num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava - já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto - quase delineado, apenas - mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal ... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano - interseção de planos - onde se completam de fazer as almas?

Se sim, a "vida" consiste em experiência extrema e séria; sua técnica - ou pelo menos parte - exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o "salto mortale" ... - digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: - "Você chegou a existir?"

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro, nada e a nossa condição no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?

Música

As Vitrines
Chico Buarque

Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vá lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão